
Em conserva, 2025. Grafite s/papel manteiga. 70X60cm
Em conserva
Foi encontrada estirada na calçada como um resto de mar que a onda cuspiu. Conservada em sal a gosto, a pele fosca, cristalizada, e os olhos opacos miravam o céu na direção do planeta anão Ceres que guarda Ahuna Mons, um criovulcão salgado.
Sua alma subiu até o cume, de lá, a 257 milhões de quilômetros de distância da Terra, seu corpo caído foi recolhido pelo peixeiro.
Disposta em um cooler, balançando no porta-malas, entre latinhas de cerveja e refrigerante, seu destino era atravessar a ponte Rio-Niterói sem entrar em decomposição. Mas o tempo pode ser um solvente rápido quando se está no trânsito, encarcerada, navegando pelo asfalto, acima do nível do mar. Nesse trópico, janeiro é temporada de calor, mas o gelo salino mantinha-se semi-derretido, resistindo às altas temperaturas.
É preciso usar luvas para pendurar cada perna em um gancho na vitrine da peixaria. Presa ao ar, como um fantasma de sal que escapava da pressa do fileteiro, foi comprada.
— Embrulha a peça inteira, por favor.
Cada dobradura cuidava de guardar sua silhueta, deitada sobre a bancada como um relicário. Seu corpo mineral, iluminado pelos raios de sol que atravessavam os poros da celulose, impressionou a superfície e marcou sua sombra nas fibras do papel.
Uma queima suave revelou o último vestígio da sua imagem.
Curada, vestida com uma nova pele, a mulher-peixe capturou luz, pois, se negou à inexistência.
Dizem que todos que olham sua imagem derramam uma lágrima, água salina que conserva sua aparição.
Mas o tempo também pode ser um solvente lento e a mesma luz do dia que revela, também clareia e esmaece o tom do seu sombreado.
Sua impressão salina não fixa a imagem: vela. É um ritual de perda, da desaparição de uma mulher de pele-papel pálida que um dia foi água.
Às vezes, penso que a mulher-peixe nunca existiu. Mas talvez toda imagem seja, como ela, um corpo em estado de conservação e tentativa de deter a exposição ao tempo, que resiste enquanto houver quem a veja.
Sua epiderme de celulose embalsamada e sensível à luz é uma escritura espectral, ao mesmo tempo velatura e vestígio, morte e insistência. Uma imagem que se recusa a desaparecer.
Um arquivo híbrido: ser orgânico e imagético, carne exposta, suspensa e armazenada à sombra. A contra-imagem retida na penumbra de um corpo alquímico curado, velado e em conserva, que deseja permanecer.